O poema abaixo foi extraído de Cerca Lourenço e outras histórias, livro da década de 1980 do advogado, dramaturgo, escritor, jornalista, poeta e cineasta campista Winston Churchill Rangel que certamente ainda vai constar na seleção de obras do blog Campistana –tão pouco atualizado ultimamente. Trata-se de uma versão contemporânea do nascimento de Jesus Cristo. O espírito transgressor dela deve ter muito mais a ver com os episódios anteriores à chegada do messias ao mundo do que com a visão deles institucionalizada no catolicismo e nas várias denominações protestantes (ou evangélicas), pentecostais e neopentecostais. Transgressor também era, à época, o autor dos versos, que, mais recentemente, mostrou saber ser comportado com De todos os tempos, Campos de todos nós: uma necessária declaração de amor, primeiro longa-metragem campista, um documentário dividido em três partes.
Poucas foram as correções dos erros do texto original: apenas substituições de um para e um a por pára e à; até a grafia incorreta do nome do autor antes da primeira estrofe (com um L a menos) foi mantida. Observe-se também que a personagem mendiga torna-se puta velha. Nada disso, tira, no entanto, o brilho e a força de “Sinceramente cristãos”.
A decisão de publicar hoje esse poema visa a provocar uma reflexão sobre o Natal como data que deveria ser celebrada de forma menos hipócrita e consumista pelos que se dizem cristãos.
SINCERAMENTE, CRISTÃOS!
(Winston Churchill Rangel)
CHURCHIL –Só não chamaram de santa.
Poucas foram as correções dos erros do texto original: apenas substituições de um para e um a por pára e à; até a grafia incorreta do nome do autor antes da primeira estrofe (com um L a menos) foi mantida. Observe-se também que a personagem mendiga torna-se puta velha. Nada disso, tira, no entanto, o brilho e a força de “Sinceramente cristãos”.
A decisão de publicar hoje esse poema visa a provocar uma reflexão sobre o Natal como data que deveria ser celebrada de forma menos hipócrita e consumista pelos que se dizem cristãos.
SINCERAMENTE, CRISTÃOS!
(Winston Churchill Rangel)
CHURCHIL –Só não chamaram de santa.
Agora, de vagabunda,
Desonrada e perdida
A família fez a festa.
De joelhos, disse a mãe:
Deus não te dê boa hora,
Pois já não és minha filha.
O irmão cuspiu-lhe o rosto
O irmão cuspiu-lhe o rosto
Com a baba grossa de bêbado.
O pai, com a mão estendida,
Mostrou-lhe o olho da rua.
São coisas de bons cristãos.
Com ele foi tudo igual,
Com ele foi tudo igual,
Botaram a boca no mundo:
Palhaço, tonto, babaca,
Disse o pai que era batista.
Tapa-buraco, pedreiro,
Disse o irmão macumbeiro
Que aos domingos ia à missa.
A mãe, como toda mãe,
Semeou logo a discórdia:
Será que esse filho é teu?
São coisas de bons cristãos.
Tratados por criminosos,
Tratados por criminosos,
Não havia crime algum,
Pois só fizeram cumprir
O que mandam os mandamentos:
Crescei e multiplicai-vos
Por amor de um ao outro.
E foram as duas crianças
Morar na beira do rio
Num barracão alugado.
Pra viver, cortaram cana,
Pra viver, cortaram cana,
Lavaram roupa pra fora.
À noite, por diversão,
Ficavam as duas crianças
Brincando com a criancinha.
Sinceramente Cristãos.
Na mesma velocidade
Na mesma velocidade
Em que passam nove luas,
Em que a cobra muda de pele,
Em que a vaca tem cria,
As dores eram verdade
Pelo ventre de Maria...
Ainda ontem crianças,
Ainda ontem crianças,
Agora homem e mulher,
Nos aceiros, noite ainda,
Vão os dois de bicicleta.
No quadro, ela com dores,
Ele nervoso, ao selim.
Cuidado agora, José!
É buraco? Pra direita.
Atoleiro? Quebra à esquerda.
A corrente saiu do eixo,
O suor corre da testa,
Dele e dela, pressa e dor.
Até que enfim o asfalto!
Agora fica mais fácil
Agora fica mais fácil
Pra consertar a corrente,
Pra ela respirar fundo
Pra beberem um pouco dágua,
Vão parando os dois cristãos.
Agora, já na cidade,
Agora, já na cidade,
Perguntam daqui, dali,
Onde é o hospital
E recebem por resposta
Um logo ali, por ali,
Que os cristãos falam apressados
Pois é véspera de Natal.
Queijos, vinhos, rabanadas,
Bacalhau de Portugal,
Festa de amigos ocultos,
Presentes distribuídos
Com as crianças do orfanato
–velhas bolas e bonecas,
Num corre-corre danado,
Não podem os bons cristãos
Atender aos seus irmãos
E pensar ao mesmo tempo
Na ceia de logo mais.
Num botequim-padaria
Descansam um pouco as pernas,
Ela come um sanduíche
De ovo frito e acha lindas
As bolhas do guaraná.
Ele com a testa enrugada,
Fica olhando pra fora
Onde passa um cavaquinho
De braço dado com um bêbado.
Na porta pára uma bicha:
–Padeiro, tem pão de ontem?
Quem mandou fazer demais.
E rouba um litro de leite.
Do corre-corre que ocorre
Se aproveita uma mendiga
Pra também roubar um pão.
Ele e ela se assustam,
Mas depois ficam mais calmos
Com o riso do português
Acostumado aos assaltos
Maiores e oficiais.
O portuga é bom cristão.
Com a psicologia
Que aprendeu, não na escola,
Mas com o umbigo no balcão,
Logo é conhecedor
De toda história e dores
E deita sabedoria
–Trata-se de um rebate falso,
Ou então parto sem doire.
No céu de chumbo um rabisco
No céu de chumbo um rabisco
Seguindo atrás o trovão.
O primeiro pingo cai.
Voltar pra casa não podem.
O padeiro os acode.
E diz com sinceridade
Que pra ficarem uma noite
–Tain lá embaixo o porão.
Ele abraçado com ela
Ele abraçado com ela
Vão descendo pela escada,
E um forte cheiro de vela
Misturado com cachaça
Esquenta os seus narizes.
Quando a vista se acostuma,
Dão de cara com a bicha
Com seu saquinho de leite,
O bêbado e o cavaquinho,
A puta velha com o pão.
Amedrontados e quietos.
Mas logo cessam os raios,
O vento forte sossega,
A tempestade amaina.
No comércio da cidade
Os cristãos voltam à doideira
Champanhe com guaraná
Melhor bebida não tem.
–Se esqueceu do pó de arroz
Pra empregada lá de casa?
–Na esquina eu consigo
Um sabonete pra ela.
–O tio rico é de quem?
De quem é o tio pobre?
Então pro meu o relógio,
Pro teu um feliz natal.
–Roubaram a minha bolsa!
Seu guarda, é aquela negra!
Numa confusão total
Como só os bons cristãos
Fazem em tempo de Natal.
As horas passam depressa
As horas passam depressa
Pois são filhas dos minutos
Todos feitos de segundos
Que é o tempo que basta
–Pra cobra dar o seu bote,
Pro sapo pular no brejo,
Pro demo piscar um olho,
Pro sino fazer din-don,
Pra agora ser meia-noite.
Na vidraça da janela
Na vidraça da janela
Do porão que dá pra rua,
Dois olhos arregalados
De homem olham os foguetes
Que saúdam o nascimento
De Nosso Senhor Jesus.
Uns estouraram, outros choram,
Mas todos por fim se apagam.
Menos um, o mais bonito
De cabeça e cauda grandes.
E o homem olhou pra trás,
Para chamar a mulher...
No que olhou, teve um susto:
Tinha nascido um menino
Que olhava a todos com calma.
Com uns olhos de um assim tão claro
Que iluminavam o porão.
Lá estavam os três reis magos,
Não com ouro, incenso ou mirra.
A bicha negra deu leite,
A bicha negra deu leite,
A puta velha deu pão,
O bêbado a poesia,
José um beijo em Maria.
Sinceramente Cristãos.
Um comentário:
Gustavo, sendo o velho e agradecido autor desse velho poema, convido o jovem amigo para visitar minha página www.dabocadamaejoana.com.br Se gostar, por favor, indique aos amigos. Abraço do grato Churchill
Postar um comentário